ARTE VISIONÁRIA - A Arte de Retratar Visões
Cada vez mais encontram-se nas artes visuais, em filmes, em festivais que envolvem música, artes e tecnologia, expressões do que se conhece como “cultura visionária”. O termo, porém, tem suscitado divergências em seu escopo de significado. Do que se trata realmente?
Uma proposição bem sucinta e simples seria: Arte Visionária é aquela cuja produção está condicionada a experiências resultantes de estados não ordinários de consciência (ENOC). Contrariamente ao que se pensa, essa forma de expressão não é recente: existe há milênios, como bem demonstra o pesquisador David Lewis-Williams em “Inside the Neolithic Mind”. Esse estudioso consigna obras de xamãs desde a remota arte rupestre, ainda que, naturalmente, aqueles não concebessem a arte como o fazemos hoje.
Como estamos falando em estados não ordinários de consciência, de imediato uma questão se impõe: para ser um artista visionário, é necessário realizar o trabalho artístico sob efeito de alguma substância psicoativa como o LSD, cogumelos, cactos alucinógenos, etc.? Não propriamente: os ENOC’s decorrem de várias causas. As mais comuns são as práticas místico-religiosas como meditação, jejum, celibato, tantra; rezas, mantras ou cânticos muito repetitivos; músicas específicas, batidas rítmicas de tambores, entre outras. Tudo isso pode produzir estados de expansão da mente. A dor, também (os faquires e os monges, com autoflagelo, usam essa técnica). Há, ainda, os casos patológicos: algumas doenças e febres podem causar delírios, visões, sonhos e pesadelos estranhos. Entre estes, encontram-se pessoas que padecem de esquizofrenias ou psicoses. O que caracteriza estas últimas, entretanto, é a falta de controle de seus processos mentais e, por conseguinte, da experiência em si.
Um dos pioneiros nesses estudos foi Carl Gustav Jung (1875-1961), que trabalhou com alguns pacientes que expressavam seu estado mental por meio de mandalas. No Brasil, trabalho semelhante foi desenvolvido pela psiquiatra Nise da Silveira (1905-1999). Discípula de Jung, com o qual trocou correspondências, os frutos de seu trabalho integram o Museu do Inconsciente.
Embora, é preciso admitir, alguns artistas usem psicoativos para acessar estados alternativos de consciência, é bom frisar: ter visões não faz de ninguém um artista; o que o torna artista é o resultado de seu trabalho (o que em si já é uma discussão infindável à parte, de que arte estamos falando e como conceituá-la adequadamente?). Facilmente se confunde o legítimo trabalho visionário com o advindo de estereótipos do imaginário e mitos de cada cultura. Segundo Laurence Caruana, autor do “Primeiro Manifesto da Arte Visionária”, lançado em 2001:
[...] as fronteiras que definem o gênero foram se tornando nebulosas. Poderemos considerar a “American Sword and Sorcery”, a ficção científica e a arte das fadas como visionárias? E que dizer da arte New Age, com seu interesse pela consciência dos golfinhos, abdução por aliens, canalização por meio de cristais, etc., etc? Cada qual deve chegar a sua própria conclusão a esse respeito (embora o autor do presente manifesto responda – peremptoriamente: NÃO!)
Equivocadamente, muitos artistas que têm predileção pela arte fantástica acabam se considerando visionários. De modo nenhum as experiências dos ENOC’s devem ser consideradas como algo “superior” - esses estados são apenas “diferentes”. Mas, como as fronteiras são nebulosas, certamente alguns trabalhos poderão ser considerados visionários pelos diletantes apressados. A forma mais segura de assegurar-se disso é verificar o passado do artista, suas práticas dentro da área e os resultados plásticos de suas visões - e não o interesse repentino pela “moda”.
De modo geral, um trabalho visionário é melhor, mas não apenas, reconhecido por outro visionário. Por exemplo, os quadros de Alexandre Segrégio retratam com fidelidade a “borracheira” (termo de etimologia hispânica, registrado por Houaiss, que designa a ebriedade decorrente da ingestão de bebidas alcoólicas e, por extensão, de ayahuasca), e só quem tem a experiência pessoal consegue reconhecer isso nas imagens por ele produzidas. Fato semelhante aconteceu com milênios de arte rupestre e os padrões entópticos que, apenas há poucas décadas, foram reconhecidos como legítimos “estados xamânicos de consciência”.
E, finalmente, a qualidade mais difícil de “ser visionário” não está na técnica. Não adianta ser um grande pintor, desenhista ou ilustrador, nem seguir alguma tendência estética ou contemporânea. A questão está no produto final do artista, ou seja, conseguir trazer para a tela, com absoluta fidedignidade, e de maneira original, as visões que teve. A obra deve servir como uma porta de entrada para um mundo interno, não como um objeto artístico autossuficiente (exatamente o oposto das intenções modernistas na arte). Nesse sentido, ficou famosa a obra de Pablo Amaringo, pintor peruano inicialmente naïf, que inspirou artistas visionários mundo afora, por sua capacidade de traduzir as suas experiências como xamã em obras visuais. Exemplo dessa dificuldade de traduzir o “irracional” em obra “material” é a aura-de-enxaqueca estudada por Oliver Sacks (v. site migraine-aura.org). Mesmo que esteja diante do fenômeno e tenha habilidade técnica, o artista nem sempre conseguirá retratar as cores e pulsações de uma aura-de-enxaqueca. O que dizer, então, das visões nos ENOC’s, geralmente bem mais complexas, bem mais “intraduzíveis”!
Muitas obras consideradas visionárias não passam de trabalhos bem feitos de um artista dotado de muita imaginação, sem nenhuma conotação de valor de uma arte “maior” ou “menor”. Tais trabalhos podem ser magníficos, muito superiores dentro do seu estilo do que uma mera aventura visionária. Não acreditamos em arte “maior/menor”, apenas queremos compreender corretamente a diferença entre os vários estilos de arte que são próximos visualmente para, enfim, poder validar o estilo visionário, seja da perspectiva da própria arte e história, seja em termos do rigor acadêmico.
Depreende-se, portanto, que, considerando-se a Arte Visionária como fruto de “visões interiores”, as imagens entópticas da Arte Rupestre se enquadram no visionário. O mesmo se pode dizer do Romantismo e do Simbolismo e, ainda, do Surrealismo (este bastante influenciado por Freud), todos de índole subjetivista, mas, em especial o último, preocupado com as manifestações do inconsciente, notadamente com os sonhos. De igual modo, mais recentemente, temos o Realismo Fantástico (1946), assemelhado ao Surrealismo, com influência mais de Jung, arquetípica. Depois, veio o Psicodelismo (anos 1950/60), que trabalhava com visões decorrentes de experiências com psicoativos, numa explosão significativa de cores e formas. Não obstante todos esses movimentos integrarem uma cultura visionária, a Arte Visionária propriamente dita, contemporânea, tem características próprias. Embora carregue um pouco desses movimentos e trabalhe, mais intensamente, a partir de níveis diferentes de percepção (em geral dos chamados fenômenos espirituais ou, pelo menos, do contato mais estreito com escalonamentos diferentes de realidade considerados válidos), é nela que o mito encontra toda sua força original, numa compreensão lúcida, coerente com uma abordagem transdisciplinar. Cremos que, assim, pode-se estabelecer uma distinção entre a Arte Visionária propriamente dita de outros trabalhos de artes visuais que com ela têm algum parentesco.
Concluindo, a Arte Visionária busca, portanto, representar plasticamente experiências concretas de um universo invisível ao qual têm acesso o artista, o xamã, o místico e alguns outros. Mesmo em meio às intempestivas e inestimáveis agitações artísticas contemporâneas, a Arte Visionária encontra espaço privilegiado de expressão proveniente dos lados mais recônditos da condição e da natureza humana.
(O autor, José Eliézer Mikosz, é artista plástico, Professor na Escola de Música e Belas Artes do Paraná, EMBAP, com doutorado Interdisciplinar em Ciências Humanas).